Quebrando correntes...
O que eu senti fica pra sempre, mesmo que as
pessoas por quem eu senti se percam de mim no meio do caminho. Amar, para mim,
se conjuga no passado apenas gramaticalmente, na vivência não. Guardo o
sentimento, mesmo quando não é mais atual, ainda assim é presente dentro de
mim. Faço questão de não jogar fora o carinho que tenho por cada um que passou
por mim de uma maneira especial. Faço questão é de alimentar. Não quero
esquecer um ex-namorado porque o namoro acabou. Nem quero esquecer alguém com
quem partilhei muitos bons momentos só porque não nos relacionamos mais
diretamente. Eu, do meu modo, continuo me relacionando com todos, mesmo que
indiretamente. Posso não me relacionar mais com diversas pessoas que passaram
pela minha vida através da fala, do contato direto, de encontros físicos, mas
eu me relaciono através da lembrança, do pensamento, da saudade, do
reconhecimento. Eu me relaciono também
através da escrita. Disso aqui que eu escrevo pensando em amigos que por algum
motivo se distanciaram, em outros que já se foram pro além-mundo terreno, e
outros ainda que tiveram passagem rápida, às vezes só de um dia, mas que por
algum motivo me marcaram.
Há lembranças tão saborosas, com gosto de chocolate
e aroma de dama-da-noite (aroma de que mais gosto), que faço questão de rechear
minha memória com elas diariamente. Não quero esquecer. Nada que foi
importante. Nem a dor da perda, a decepção por achar que conhecia e descobrir
que não, nem a lágrima do amor sofrido, nem o silêncio sufocante da melancolia
depressiva. Nem a gargalhada com sabor de brilho nos olhos eterno, nem o abraço
com jeito de porto-seguro acompanhado de pôr-do-sol. Nascer do sol. Nasço
novamente todos os dias e em cada nascimento meu surgem novas características,
sonhos e planos. Quimeras doces com cheiro de erva doce e delicadas como
violetas, corpo de água que nada como sereia dentro de si mesmo. Nascem comigo
todos os dias novas expectativas, novas possibilidades capazes de gerar outras
mil. Novas capacidades de olhar diferente pro mesmo objeto, de sentir diferente
o mesmo cheiro, de se deliciar de modo diferente com a mesma língua.
Mãos que movem móveis em casa, mãos que constroem
os móveis da vida, nos quais nos apoiamos para sentar, deitar, comer e amar.
Pensamento que move a mente e sentimento que move a alma. Energia que move o
corpo e poesia que renova a capacidade de viver. E de viver bem. Nasce comigo a
cada madrugada, prontos para serem aproveitados a partir de cada manhã.
Morre comigo a cada noite o que foi concluído. Às
vezes não chega ao fim, mas ainda assim é concluído por já ter alcançado o
sentimento desejado. O objetivo não é no plano material, mas naquele plano onde
os sentimentos brincam de pular corda e de pique-esconde. E também de colorir.
Colorem momentos, pessoas e paisagens e são mutuamente coloridos por si mesmos,
entre si mesmos e também por aquilo que colorem.
Mas guardo comigo também a morte. O não vivo é também presente em
minha alma. Não me esqueço de nada. E não quero esquecer. Morreu. Apagou. Não
respira mais. Mas ainda guardo o sentimento ou, pelo menos, a lembrança querida
do sentimento.
“Poesia não é para compreender, é para incorporar.”
(Manoel de Barros)
Lindo texto, é de uma profundidade imensa, que toca o leitor. Sempre me dizem que não posso viver do passado e de fato concordo com isso, pois o passado me incomoda. Mas se ele não existisse, se eu não tivesse aprendido, caído, sobrevivido, eu não seria o que sou hoje. Então, não dá pra se desvencilhar do passado. E concordo com os seus argumentos, pois, é olhando-se para o que passou, que podemos melhorar, crescer e construir um futuro melhor. Ótimo texto, bastante intrigante. Eu tenho programado um conto sobre as 'correntes' também. Quando publicá-lo, convido-lhe a ler.
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