O samba e o futebol - a ginga das rodas e os dribles nos campos
As perseguições aos negros, aos mestiços e aos mulatos, não eram
restritas somente no meio musical e social, o preconceito se estendia
também nos esportes, como é relatado no livro O Negro no futebol
brasileiro, de Mário Filho. A obra conta que no início, o
esporte bretão era praticado somente pela elite branca e os negros
eram proibidos de atuarem nas equipes.
Mario Filho
Mario Filho relata que negros e mulatos povoavam os locais de
concentração da elite brasileira e, aos poucos, foram conquistando
espaço nos grandes clubes, entretanto, não eram igualmente
tratados, pois não podiam encostar-se aos brancos durante as
partidas, além de receberem a culpa em caso de derrota e serem
severamente punidos. Assim nascia a habilidade incomum que
conquistaria o mundo. Os negros, mulatos e mestiços levavam para o
futebol de rua e de várzea, a ginga dos terreiros de samba, os
movimentos de capoeira, e reproduziam nos campos para evitar os
contatos com os brancos. As rígidas regras direcionadas aos negros,
mestiços e mulatos deram origem aos dribles que transformariam o
Brasil no País do Futebol.
Foi no Campeonato Sul-Americano de 1919 que nasceu o primeiro herói
do futebol brasileiro, o mulato Friedenreich1,
filho de um alemão com uma negra. Ele se tornou herói ao marcar o
gol do título brasileiro contra os uruguaios, que o apelidaram de
“El Tigre”, pela sua valentia demonstrada em campo. Mas foi
somente em 1923, que um clube com negros no time foi campeão,
abrindo as portas para que o futebol se tornasse multirracial. Na
ocasião, o Vasco da Gama foi campeão carioca com um time formado,
em sua maioria, por negros, mulatos e mestiços pobres e analfabetos.
Em 1926 seria a vez do São Cristóvão repetir o feito do Vasco e
sagrou-se campeão com um time miscigenado.
Friedenreich
Os heróis com a cara do povo brasileiro foram surgindo,
popularizando o futebol e encantando o mundo com a forma envolvente
de jogar. O negro Leônidas da Silva, o inventor da bicicleta, também
conhecido como Diamante Negro, se tornou o maior ídolo do futebol
dos anos de 1930 e 40, atuando por grandes clubes como o Flamengo,
São Paulo e Bonsucesso.
Leônidas da Silva
A forma original de jogar futebol dos negros, mestiços e mulatos
brasileiros, cheios de ginga e de malícia, rendeu um artigo
jornalístico elaborado por Gilberto Freyre, chamado “Foot-ball
mulato”. Feito após a boa participação do Brasil na Copa do
Mundo de 1938, realizada na França.
Um repórter me perguntou anteontem, o que eu achava das admiráveis performances brasileiras nos campos de Strasburgo e Bordeaux.
Respondi ao repórter que uma das condições de
nosso triunfo, este ano, me parecia á coragem, que afinal tivéramos
completa, de mandar à Europa um time fortemente afro-brasileiro.
Brancos, alguns, é certo; mas grande número, pretalhões bem
brasileiros e mulatos ainda mais brasileiros.
O nosso estilo de jogar futebol me parece contrastar
com o dos europeus por um conjunto de qualidades de surpresa, de
manha, de astúcia, de ligeireza e ao mesmo tempo de espontaneidade
individual em que se exprime o mesmo mulatismo de Nilo Peçanha, que
foi até hoje a melhor afirmação na arte política.
Os nossos passes, os nossos pitu’s, os nossos
despistamentos, os nossos floreios com a bola, há alguma coisa de
dança ou de capoeiragem que marca o estilo brasileiro de jogar
futebol, que arredonda e adoça o jogo inventado pelos ingleses e por
outros europeus jogado tão angulosamente, tudo isso parece exprimir
de modo interessantíssimo para psicólogos e sociólogos o mulatismo
flamboyant e ao mesmo tempo o malandro que está hoje em tudo que é
afirmação verdadeira do Brasil. (Diário de Pernambuco, 17 de junho
de 1938).
Os negros, os mulatos e os mestiços passaram a ser figuras normais
no futebol e, até mesmo, idolatradas pelo povo e pela elite, que
parecia se esquecer do preconceito que tinham de suas raças. Aquele
preconceito de outrora não existia mais no mundo futebolístico,
pelo menos não declarados. Com a Segunda Guerra Mundial, houve anos
sem carnavais, mas os sambas e marchas eram produzidos com críticas
à Hitler e ao Nazismo. Nesta década o samba já estava consolidado
(entrarei neste ponto nos capítulos mais à frente). No futebol, a
Copa do Mundo foi interrompida em 1938, quando o Brasil teve uma bela
participação.
No ano de 1950, a Copa do Mundo foi realizada no Brasil, e a seleção,
bem miscigenada venceu o México, empatou com a Suíça e venceu a
Iugoslávia pela primeira fase. Na segunda fase venceu a Suécia e
venceu a Espanha, jogo marcado pelo fato de 200 mil pessoas cantarem
a marchinha Touradas em Madri,
de João de Barro.
Touradas em Madri,
de João de Barro, na voz de Carmen Miranda
Na final desta Copa, o Brasil foi derrotado, e novamente, a culpa
recaiu em cima dos três negros do time, o goleiro Barbosa, Bigode e
Juvenal. A derrota para o Uruguai trouxe de volta o racismo
adormecido durante anos. Mesmo sem acusá-los por causa da raça, o
povo brasileiro escolhera seus culpados, assim como o Jornal dos
Sports publicou em suas páginas de 22/07/1950.
Para vencer o Uruguai, foi isto que o match da
decisão mostrou, bastaria que Bigode não falhasse duas vezes.
Bastaria inclusive, que Bigode só falhasse num dos goals ou que
Barbosa, mesmo Bigode falhando, não falhasse num dos goals.
Bigode e Barbosa não falharam por falta de fibra.
Falharam porque sentiram demasiadamente a carga da responsabilidade
de dar ao Brasil o título de campeão do mundo. (Jornal
dos Sports, 22/07/1950: p. 5).
A Copa de 1958 revelou para o mundo o negro que se tornaria Rei. O
time com Zagallo, Bellini, Nilton Santos e Vavá, contava também com
os negros Pelé e Didi e o mulato Garrincha. Estes nomes deram outra
cara ao futebol brasileiro. O negro havia se consolidado no futebol
nacional e não havia mais nada a se provar.
1
Pixinguinha e Benedito Lacerda compuseram uma música chamada Um
a zero, em homenagem ao gol marcado por Friedenreich no
Sul-Americano de 1919. Foi a primeira obra que envolvia música e
futebol.
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