[2] Contém spoilers, mas a sua leitura vale à pena.
Lima Barreto, ao terceiro dia, peça em cartaz
no Teatro Dulcina até o dia último deste mês (próximo domingo), é um prato
cheio para aqueles que gostam de literatura e teatro. Talvez uma oportunidade
ainda maior para aqueles que não conhecem a história de vida de Lima e como, ao
contar suas histórias, em uma literatura engajada e de forte crítica social,
mostra seu humor sarcástico e o brilhantismo de ir contra o idealismo romântico:
a literatura bruta como a vida. Este brilhantismo é ofuscado pelos ataques
racistas de uma sociedade que não estava disposta, nem acostumada, a digerir
uma literatura rebelde e incômoda, ainda por cima pelos lábios de um negro. Um
dos nossos maiores literatos só viria a ter o reconhecimento que merecia, como
muitos escritores, postumamente.
Como
tradicionalmente ocorre, o autor e sua maior obra são associados: O triste fim de Policarpo Quaresma é
Lima Barreto. Tal associação rege a peça e, apesar de comum, é característica
primordial para a sua originalidade, visto que a peça não objetiva nem
apresentar um panorama biográfico do autor, nem apenas narrar o enredo de sua
principal obra. Se o par autor – obra principal é recorrente nos livros, ao subir
ao palco torna-se inesperado. A peça é recheada com boa dose de humor – ora
inteligente, ora sarcástico – e de criatividade, que expõem a excelente
qualidade do texto escrito por Luis Alberto de Abreu. O retrato que se pinta de
Lima Barreto combina a ficção e a interpretação de Abreu sobre o literato e os
fatos de sua vida, as críticas que esperava, mas não recebeu: o silêncio que
tinha como base um abismo bem mais profundo de uma sociedade recém saída da
escravidão e do império. Império este do qual Lima mostrou-se, em vida,
favorável e nostálgico, vendo aquela sociedade como uma tradição da
solidariedade que era completamente ausente na República que via nascer.
Muitas das
críticas ácidas que Lima Barreto faz a esta República insurgente estão também
muito bem expressas na sua República das Bruzundangas. Alusões explícitas de
“Os Bruzundangas” somam-se ao correr do Triste
Fim de Policarpo. O Lima maduro trava diálogos comoventes com os seus
personagens do Romance e até dele para com ele mesmo, em uma espécie de
devaneio: o Lima de 30 anos de idade. Isso ocorrendo em meio ao regime de
internato que fora submetido em um hospício, em função de suas depressões.
Ficam patentes as incongruências indissolúveis entre a ciência, cujo portador é
o médico, e o escritor. Há toda uma trama entre Lima, esse médico que nenhuma
certeza pode oferecer a seus pacientes, e Felipe, há longa data internado, em
uma espera infrutífera de uma terça-feira, possível data de sua saída, que
nunca chega.
Nando Cunha interpreta
o jovem Lima Barreto nos esforços de escrever seu grande romance. Esse núcleo é
composto também por Mario Hermeto, o ator que dá vida à personagem Gregorinho.
Contracenam – como todo o elenco – de forma magistral; sendo a parte mais cômica
da peça a expressa pela embriaguez constante do amigo de Lima. Este, como em Os Bruzundangas,
diz que há pseudoliteratos que querem figurar na ABL, um mundo onde só os
bacharéis têm vez e esses “doutores” sendo os únicos aceitos socialmente para o
estudo. No fundo, porém, para Lima Barreto, o objetivo maior de todos eles é
fazer parte da burocracia dos empregos públicos. O escritor vê no Barão do Rio
Branco o exemplo maior da personificação desse mal. Entre uma recordação e
outra, reaparece o médico. A animosidade entre doutor e escritor decresce, pois
aquele reconhece a inteligência e comportamento atípico de Lima, incansável em
suas lúcidas críticas. É essa história que o Lima Barreto de Luis Alberto de
Abreu vive: internado, interagindo em um misto de alucinação e emoção profunda
com sua juventude e com os personagens do romance em que o protagonista é
Policarpo.
Sim, estão
todos lá: saindo do encontro da caneta com o papel do jovem Lima, ao mesmo
tempo em que, internado quando mais velho, observa e dialoga, chegando ao ápice
de um embate existencial entre ele e o major Quaresma. Este protagonista que dá
nome ao livro é ridicularizado por seu ufanismo e idealismo, tendo como triste
fim sua condenação ao fuzilamento por Floriano. Seu projeto de fazer do Tupi a
língua oficial do país fracassa. O intuito de modernizar o sistema agrário do
país conhece o mesmo destino de seu Tupi. Todos, exceto Ismênia, não escapam
aos ataques por parte daquele que os inventou. Ismênia é Lima Barreto. O Lima
ressentido e da luta não se reconhece com o Lima frustrado do hospital: segue
na construção de seu romance.
Tecnicamente,
tudo parece ser digno de um grande espetáculo, digno ao igualmente grandioso
nome Lima Barreto, que ficou
registrado na história da literatura nacional. O elenco de ótima qualidade e
uma atuação que a mim pareceu impecável; um cenário belo e criativo, que
retrata a vida urbana cerceada de livros.
A peça tem duração de cerca de uma hora e meia
e apresenta, além da qualidade, outras importantes vantagens: localização e
preço acessível. O Teatro Dulcina fica na rua Alcindo Guanabara, Cinelândia, no
centro da cidade do Rio de Janeiro. O valor dos ingressos é de 20 reais a
inteira. O espetáculo ocorre de sexta a domingo, às 19h. As últimas
apresentações serão entre os dias 28 e 30, neste fim de semana. Não percam!
Por Felipe Cavalcanti
Por Felipe Cavalcanti
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