domingo, 9 de outubro de 2011

Fluxo

Este conto foi escrito por um amigo meu muito querido, Gregório Tkotz, com cujos contos é possível "viajar" muito e cujo blog é http://sonhadordesperto.blogspot.com/.
Visitem-no!


-... mas quando o fonema suprimido é um som vocálico, o nome dado ao processo é crase, que não é sinônimo do acento grave usado para evidenciá-la. Esses processos são importantes para a língua, pois... - O professor continuou a falar e voltei ao meu estupor. A matéria já não era interessante, e o professor conseguia fazê-la ficar ainda mais desinteressante com sua “excelente” didática. E era só decorar as tabelas do livro para se dar bem na prova.
A sala estava em silêncio. Só o professor falava, com uma voz monótona e hipnotizante. Os alunos apoiavam suas cabeças em mãos, braços, carteiras. A maioria estava longe demais para ouvir qualquer coisa. O professor parecia não perceber, ou não se importar. Uma mosca entrou zumbindo pela porta.
O zumbido era insuportável. Era um barulho contínuo, e não entrava só pelos ouvidos, mas também fazia todo corpo vibrar. O calor só ajudava a piorar a sensação desagradável que eu estava sentindo. E olhando ao redor percebia que não era o único. Todos estavam incomodados em algum nível.
Mas nós seguimos pela floresta mesmo assim. Andávamos em fila indiana por uma trilha que parecia não levar a lugar algum. As mesmas árvores, plantas, e o insuportável zumbido, já havia três dias. O guia afirmava que não estávamos perdidos e, como ninguém mais conhecia aquela região, tínhamos que confiar nele.
O anoitecer na selva é diferente do a céu aberto. Nós não vemos o céu ficar escuro. Apenas a claridade, que já é difusa devido à cobertura vegetal, começa a diminuir. É hora de montar acampamento. Como sempre o guia correspondia à nossa confiança e chegamos a uma clareira bem a tempo.
Montamos rapidamente nosso acampamento, comemos enquanto dividíamos histórias e finalmente entramos nas barracas para dormir. Mesmo à noite era quente e abafado. Os mosquitos não davam trégua, mesmo com a fumaça da fogueira e o repelente. Fechar os olhos era difícil. Mas depois de algum tempo, as horas de caminhada venceram.
Meus olhos foram abrindo lentamente, se acostumando com a claridade. A luz era muito forte e eu estava completamente desnorteado. Eu me levantei antes de conseguir ver alguma coisa direito. Eu passei pela porta ainda com os olhos ardendo.
A primeira coisa que eu realmente vi foi uma enorme massa amorfa. Era um pouco mais baixa que eu, um pouco mais larga, transparente-esverdeada e se movia. Dentro havia algumas partes mais opacas, que se sobressaíam. A maior era quase esférica, aproximadamente do tamanho da minha cabeça, de um verde mais escuro que o resto e ficava perto do centro da coisa.
Mas assim que eu comecei a observá-la, a massa começou a se modificar. A esfera central começou a subir enquanto deixava um rastro que se espalhava pelo resto da coisa. As outras partes opacas também começaram a se organizar, se juntando, se dividindo, se alongando. A superfície começou a se tornar opaca e logo não se via o interior. O corpo começou a tomar forma, foi se afinando embaixo e se dividiu em duas partes, enquanto de cima saíram mais duas protuberâncias, que também se alongaram.
E eu olhava para o meu reflexo. Peguei o creme de barbear e passei no rosto. Depois a gilete e me pus a tentar não sangrar dessa vez. Quase consegui. Botei pasta na escova, escovei os dentes, enxagüei. Peguei a camisa, a calça e me vesti. Calcei o tênis e saí do banheiro.
Casaco, chaves, carteira, celular, e saí de casa. Fui para a garagem tentando não deixar o meu cachorro sujar de terra a minha roupa. O céu estrelado sobre minha cabeça prenunciava uma boa noite, e eu pretendia aproveitar. Até porque, não era sempre que eu tinha tempo para me divertir. Mesmo à noite.
Peguei a chave e coloquei na ignição. Arrumei o banco, o cinto e liguei o motor. Programei o piloto automático para Sirius A e me preparei para a decolagem. Desde o incidente com o buraco negro em Londres tinham ficado proibidas as viagens dimensionais a menos de meia hora-luz de qualquer planeta habitado.
Agora se perdia mais de uma hora para se chegar a outros sistemas estrelares. Mas em nome da segurança era necessário. O inibidor de inércia impedia que tudo se desintegrasse, mas mesmo assim a sensação de velocidade da decolagem era mais ou menos como a aceleração de um antigo caça.
O início era sempre calmo, enquanto se acumulava energia para o resto da viagem. Eram apenas alguns minutos antes da verdadeira emoção. E eu sabia exatamente o ponto em que iria começar. Já tinha feito isso algumas vezes e a emoção ainda era a mesma.
A gritaria foi geral quando o carrinho começou a descer. Todas as bocas estavam abertas para descarregar a dose extra de adrenalina. Alguns braços se levantaram, os meus inclusive, como que para saldar o vento que vinha de encontro dos rostos dos loucos por emoções fortes, pois se não o fossem, não estariam ali.
Apesar dos gritos, ninguém ouvia ninguém. O vento era ensurdecedor. Aumentava e diminuía conforme a velocidade do carrinho. Mas não chegava a ficar baixo. Só depois de algum tempo que ele diminuiu. A volta tinha acabado. As pessoas começaram a deixar os seus lugares. Todos falavam e suas vozes se juntavam formando um zumbido.
Eu guardei meu caderno, peguei a mochila, e fui procurar atrás do resto do pessoal para almoçar.

Textos como esses são muito bacanas pois deixam vagas certas passagens, de modo a permitir que o leitor ative sua imaginação. De uma aula fomos para uma floresta, de lá para um mistério indefinível, para a casa do personagem e em seguida para uma viagem intergalática, ou seria uma montanha-russa? Imagine!

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